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A Fruição pode ser relativizada?

Em meio à crise econômica vivenciada pelo país entre os anos 2014 e meados de 2019, foi sancionada a Lei 13.786/18, que regulamentou várias questões relativas aos “distratos” imobiliários, dentre elas a fixação do percentual de fruição a ser retido pelo loteador nos casos de rescisão contratual por iniciativa e culpa do consumidor adquirente. O dispositivo de Lei, em regra, não abarca margem para interpretações, porém, não raro há decisões do poder judiciário interpretando o texto de Lei de forma equivocada, forçando a tentativa de (in)justiça e chancelando uma proteção legislativa ao arrepio do que estabelece o diploma legal.

 

A Lei 13.786/18 talvez tenha sido a mais importante atualização legislativa dos últimos 10 anos em relação ao mercado imobiliário brasileiro, tendo em vista o momento em que se deu sua sanção pelo Ex-Presidente Michel Temer, qual seja: no apagar das luzes do mandato do Ex-Presidente emedebista e consequentemente no final do ano de 2018, no pico de uma crise sem precedentes para o mercado imobiliário, conhecida como crise dos “Distratos”, que já se pendurava desde meados de 2014.

 

A pressão por parte do mercado, por meio das instituições que o representam nos mais diversos segmentos era grande há anos e desde a entrada do Dr. Michel Temer na Presidência da República, em razão de impeachment da Ex-Presidente Dilma Rousseff várias soluções já haviam sido pensadas, inclusive a possibilidade de uma Medida Provisória que regulasse os “distratos” por um determinado tempo, mas que não foi efetivada.

 

Os números do que popularmente chamamos equivocadamente de “Distratos”, tendo em vista que o que na verdade se discutia no judiciário eram e ainda são Resoluções Contratuais e não Resilição Contratual, que é a espécie de Rescisão Contratual onde se encontra a modalidade conhecida como Distrato, eram alarmantes e se mantiveram durante os anos de 2014 à 2018 na casa de 40% (quarenta por cento) dos imóveis que eram vendidos no mercado imobiliário brasileiro, aí somado incorporações e loteamentos. Para se ter uma ideia, segundo dados de pesquisa do SECOVI/SP, em novembro de 2016 houve o pico do número de Resoluções Contratuais no país, com 44% (quarenta e quatro por cento) de Rescisões naquele mês.

 

Era necessário uma Lei que regulamentasse a questão, já que cada vez mais os julgados dos quatro cantos do país formavam jurisprudência regulando a matéria em percentuais específicos, independente do bem adquirido pelo consumidor via contrato de promessa de compra e venda ou compromisso de compra e venda, ou seja, lotes ou casas e/ou apartamentos, qual sejam: 10% (dez por cento) de retenção pelo empreendedor e 90% (noventa por cento) de devolução para o adquirente, o que causava um verdadeiro desequilíbrio do negócio jurídico em desfavor do empreendedor, loteador ou incorporador imobiliário.

 

Em 2016 o SECOVI/GOIÁS contratou a empresa Tendências Consultoria, pessoa jurídica consolidada no mercado de análises e pesquisas, para que essa analisasse qual deveria ser o percentual correto de retenção por parte do empreendedor, para os casos de rescisão contratual, que não gerasse prejuízos ao desenvolvedor imobiliário. A pesquisa se deu em alguns meses e focou no segmento de loteamentos, tendo sido encontrado um percentual médio de retenção de 37% (trinta e por cento), como o adequado para os casos de loteamentos onde houvessem rescisões contratuais por iniciativa do consumidor adquirente.

 

Para complicar o período relatado, em agosto de 2015 o STJ editou e aprovou a súmula 543, que por muito tempo foi interpretada equivocadamente pelo judiciário e aplicada de forma errônea, vez que a mesma é clara e expressa em dizer que sua aplicabilidade se dá em relação aos contratos de “promessa de compra e venda”, para “resoluções contratuais” e por tantas e tantas vezes foram observados julgados que aplicaram a súmula em compromissos de compra e venda e em resilições contratuais.

Súmula 543STJ: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.

 

A Súmula em questão prevê que a devolução do percentual (que ela deixa em aberto), para casos de iniciativa do consumidor deve se dar de forma imediata, tendo prejudicado sobremaneira o caixa de inúmeras empresas do segmento, durante o período de crise, tendo em vista o percentual elevado de rescisões contratuais.

A súmula 543, somada ao momento econômico vivenciado pelo país no pós-impeachment da Ex-Presidente Dilma causaram um verdadeiro caos no mercado imobiliário, tendo várias imobiliárias, incorporadoras e loteadoras fechado suas portas no período e, as que não fecharam, entraram com pedidos de Recuperação judicial, tendo esses pedidos aumentado consideravelmente neste período.

 

A NOVA LEI

Porém, em dezembro de 2018 nasceu a tão esperada Lei 13.786, conhecida popularmente como Lei dos Distratos. Além de regulamentar os percentuais a serem retidos para os casos de rescisão contratual por culpa ou iniciativa do consumidor, nas incorporações e nos loteamentos, ela também regulamentou várias outras questões, como por exemplo a possibilidade de atraso de obra por até 180 (cento e oitenta) dias, o direito de arrependimento de 7 (sete) dias, o padrão contratual com um rol de informações que devem constar no quadro resumo do instrumento contratual, multa, fruição, entre outras questões.

 

Já em 2019 o efeito da nova Lei foi sentido positivamente pelo mercado, já que houve uma redução média de aproximadamente 30% (trinta por cento) do número de “distratos” no país, saindo do patamar de 40% (quarenta por cento) de média, para 10% (dez por cento).

 

Sobre a fruição, estabeleceu a mencionada Lei que para incorporações essa seria de 0,5% do valor atualizado do contrato, pro rata die e que para loteamentos, o percentual seria de 0,7%, sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo seria contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador.

“Art. 67-A . Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente:

I – a integralidade da comissão de corretagem;

II – a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga.

(…)

III – valor correspondente à fruição do imóvel, equivalente à 0,5% (cinco décimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, pro rata die ;

E

“Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens:

I – os valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% (setenta e cinco centésimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo será contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador;

 

Observe que no caso do art. 32. A, da Lei em questão, que acrescentou tal dispositivo à Lei. 6.766/79, é expresso o momento da contagem do prazo: “contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador”. O artigo do texto de Lei em questão não faz qualquer referência à existência de construção ou não, ou existência de projeto construtivo ou não. Ele fala em posse, pura e simplesmente.

 

Podemos discutir aqui sobre o momento da posse, se passa a existir quando da assinatura do contrato de compromisso de compra e venda ou da entrega das obras de infraestrutura do empreendimento, o famoso TVO – Termo de Verificação de Obra. (O Termo de Verificação de Obra (TVO) é um documento emitido pela Prefeitura após a conclusão das obras de divisão do terreno e infraestrutura em loteamentos. Ele serve para comprovar que a empresa responsável pelo loteamento cumpriu todas as etapas que foram previstas quando o empreendimento foi planejado e autorizado.), mas nunca, JAMAIS, discutir sobre a existência ou não de construção, ou juridicamente, para rebuscar mais a questão, “realização/obtenção do efeito pretendido pelo consumidor”.

 

Entretanto, o poder judiciário, por meio de variados julgados, tem realizado de forma muito equivocada, essa interpretação da Lei, indo de encontro ao que foi determinado pelo legislador e tentando forçar uma justiça à revelia do que estabelece a legislação própria aplicada à matéria.

COMPRA E VENDA – Lote – Lei do Distrato – Desistência do comprador – Retenção dos valores pagos a título de IPTU, taxa de conservação, contribuição social Slim, fundo de transporte e corretagem, previstos nos Regulamentos do Loteamento – A Lei n. 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, em especial o art. 32-A, deve ser aplicada de forma harmônica e com observância das normas que regem a proteção e defesa do consumidor, reconhecidamente vulnerável no mercado de consumo (art. 4º, inciso I, Lei n. 8.078/90), e que são de ordem pública e social, estabelecidas na Lei n. 8.078/90, gozando, ainda, o consumidor de proteção constitucional (art. 5º, inciso XXXII e art. 170, inciso V) – Obrigações devidas da imissão na posse até o deferimento da tutela de urgência – Redução dos encargos relacionados a taxa de fruição para 0,1% do valor atualizado do contrato, por não haver construção erigida pela vendedora e despesas operacionais a incidir sobre as importâncias pagas pelo preço, diante de sua desproporcionalidade – Limites máximos previstos na lei que podem ser adequados pelo juiz – Recurso da ré provido em parte.

(TJ-SP – AC: 10005270420218260420 SP 1000527-04.2021.8.26.0420, Relator: Alcides Leopoldo, Data de Julgamento: 20/06/2022, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/06/2022)

APELAÇÃO CÍVEL. DISTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE LOTE. PRETENSÃO DE RESTITUIÇÃO DE VALORES PAGOS E INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. CULPA DO ADQUIRENTE. ABUSIVIDADE. PREVISÃO DE DEDUÇÕES INFUNDADAS. APLICABILIDADE DA LEI FEDERAL nº 13.786. IMPOSSIBILIDADE. DEVOLUÇÃO EM PARCELA ÚNICA. CORREÇÃO MONETÁRIA A PARTIR DE CADA DESEMBOLSO. JUROS DE MORA. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO. LOTE NÃO EDIFICADO. INDENIZAÇÃO PELA FRUIÇÃO/OCUPAÇÃO. INDEVIDA. DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO. RECURSO DO AUTOR NÃO PROVIDO. PROVIDO EM PARTE O APELO DA RÉ. 1. Em caso de distrato de compromisso de compra e venda de imóvel, é abusiva a cláusula que estabelece a restituição de menos de 50% do preço pago pelo consumidor. Inteligência do Artigo 51, V, do CDC. Precedentes. 2. Os percentuais de restituição previstos no artigo 67-A da Lei nº 4591/1964, instituídos pela Lei nº 13.786/18, não se aplicam a contratos de venda e compra de bens imóveis firmados até 21/12/2018, sob pena de violação do princípio da irretroatividade. Enunciado nº 38.15 desta Colenda 3ª Câmara de Direito Privado. 3. Correção monetária que deve ser computada da data do desembolso até o efetivo pagamento, por se tratar de recomposição do poder de compra da moeda, enquanto o termo inicial dos juros moratórios é o trânsito em julgado em caso de resolução contratual por culpa exclusiva do comprador. 4. É indevida indenização pelo tempo de ocupação de imóvel, na hipótese de lote não edificado, que não permite fruição plena do bem ou proveito econômico imediato. Precedentes desta Câmara. 5. O descumprimento contratual e abusividade de cláusulas no contrato ou distrato, por si só, não dá ensejo à compensação por dano moral. Precedentes desta Câmara.

(TJ-SP – AC: 10018177120188260222 SP 1001817-71.2018.8.26.0222, Relator: Maria do Carmo Honorio, Data de Julgamento: 17/04/2021, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/04/2021)

 

Além desses julgados, que estabelecem a tese para negar a fruição, total ou parcial, no pleno uso do bem econômico, em razão da não edificação no bem, há outros que da mesma forma não aplicam a interpretação correta à Lei, por entenderem que a fruição caberia somente após eventual inadimplemento por parte do adquirente do lote. O que é um verdadeiro absurdo e clara inovação interpretativa, já que não há essa previsão na legislação.

 

No primeiro julgado citado, inclusive, a decisão foi de redução do percentual estabelecido em Lei, para 0,1% ao mês, sem previsão legal que legitime essa inadequada interpretação legislativa.

 

CONCLUSÃO

Salvo melhor juízo, nos parece cristalino a falha na interpretação, que, se não combatida nas instâncias superiores e artigos como esse, se consolidará como uma verdade por meio da jurisprudência, invertendo a ordem lógica das fontes do direito, onde a jurisprudência sobrepõe à Lei.


Estabelece o artigo 140 do Código de Processo Civil que o juiz não pode se eximir de julgar o conflito, ainda que não exista lei expressa prevendo aquela hipótese verificada nos autos, alegando lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico. Para tanto deverá valer-se da jurisprudência, da doutrina estrangeira, dos usos e costumes, mas não lhe é dado deixar de arbitrar o conflito.

 

De igual modo e com mais razão, não pode o magistrado deixar de aplicar a lei quando a situação de fato é clara a demonstrar a ocorrência da hipótese prevista pelo legislador.

 

Se assim não for operado, caímos na vala da insegurança jurídica tão temida pelos mais diversos segmentos da economia e que tanto prejudica os andamentos saudáveis dos negócios jurídicos realizados em nosso país.

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