Pais são herdeiros?
Trabalhar com famílias e empresas traz surpresas.Certa vez, o encontro com um jovem começou assim:
– Não tenho uma boa convivência com os meus pais e soube que se eu morrer eles serão meus herdeiros. Isso é verdade?
– Conte mais sobre a sua vida – respondi.
Ele então me contou que era casado pelo regime da comunhão parcial de bens, que vivia muito bem com a mulher, mas que sua mãe sempre fora uma pessoa difícil e que, de tanto vê-la maltratar sua companheira, decidira se afastar do convívio com os pais.
O casal ainda não tinha filhos, mas pretendia ter. Sendo assim, enquanto não existissem descendentes, em caso de falecimento, os pais seriam herdeiros sim, concorrendo com o cônjuge pela herança.
O jovem e sua mulher tinham construído uma empresa, se davam bem, trabalhavam juntos e já havia um patrimônio. Ele desejava proteger a esposa. Em suas palavras, gostaria de contratar um monte de advogados para ficar entre a mãe e a mulher, garantindo que ela nunca mais fosse maltratada caso algo ocorresse com ele.
Trabalho em um espaço de não julgamento no qual o real desejo do sujeito é resguardado, existindo instrumentos jurídicos para proteger sua vontade. Esses instrumentos podem ser customizados, respeitando-se os limites da lei. O que esse jovem poderia fazer?
As opções seriam lavrar um testamento, elaborar Diretivas Antecipadas de Vontade (Testamento Vital) e realizar uma alteração contratual estipulando cláusula de barreira de entrada, na qual os herdeiros não ingressariam na sociedade. Em hipótese alguma sua mulher seria sócia de seus pais, caso ele viesse a faltar. Se adoecesse, segundo o Testamento Vital, a pessoa responsável por ele seria a mulher e não a mãe ou o pai.
Anos atrás, essa perspectiva não seria possível para mim, pois era moralista e separava tudo entre certo e errado – nessa perspectiva eu tentaria convencer o jovem a se aproximar da mãe. Atualmente, estudando as questões psíquicas, aprendi a respeitar a escolha de cada um e suas vivências particulares.
Nem todas as mães são boas, mas a cultura reforça a imagem de um amor incondicional, tentando enquadrar todas nesse modelo idealizado.
Há casos em que os filhos precisam encontrar forças para se proteger, bem como profissionais capazes de escutá-los. Quando finalmente reconhecem a situação abusiva em que viveram por anos, podem encontrar a ajuda necessária para se defenderem e sustentarem sua posição. A paz se constrói com o respeito às diferenças e cada um pode ser capaz de construir os seus limites, ainda que seja para se proteger dos próprios genitores.