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Lei da Alienação Fiduciária x Código de Defesa do Consumidor: quem perde com esse embate?

Em meados de junho de 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou o Recurso Especial 1.891.498/SP, para submeter a seguinte questão a julgamento: definição da tese alusiva à prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia. A comunidade jurídica já vivia um grande enfrentamento em relação à matéria, e os tribunais estaduais proferiam decisões em sentido opostos, ora mantendo a aplicação da lei específica (Lei 9.514/97, lei que instituiu a alienação fiduciária para bens imóveis), e em outras decisões determinando a aplicação genérica da Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor.

 

Importante esclarecer ao leitor as consequências da aplicação de cada lei, na hipótese de inadimplemento do devedor fiduciante. Na hipótese de execução da garantia fiduciária, o imóvel vai à leilão público com o objetivo de quitar a dívida (juros, multas e demais encargos contratuais, inclusive os relacionados com o próprio leilão). No primeiro leilão, o imóvel é ofertado pelo valor de avaliação; no segundo, pelo saldo devedor. Após a realização do segundo leilão, a dívida com o credor é quitada, e havendo valor a sobejar, o montante é devolvido ao devedor. Quando o Código de Defesa do Consumidor é aplicado, não se fala em execução fiduciária, mas equivocadamente entende-se que o contrato pode ser resolvido. Em tal hipótese, são retidos percentuais previstos em contrato, além das despesas com a cobrança, impostos, condomínio, etc., e a devolução do valor remanescente é feita de uma só vez.

 

Importante esclarecer que apesar de haver previsão legal na Lei de Incorporação determinando que a retenção deve ser até 25% ou ainda, 50% se a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação (artigo 67-A) e, no caso da Lei de Parcelamento Urbano, previsão determinando que deve ser aplicada à retenção uma multa até 10% do valor atualizado do contrato, além de fruição de 0,75% ao mês, comissão de corretagem e das demais despesas (artigo 32-A da Lei 6.766/79), os tribunais geralmente autorizam a retenção no percentual entre 10% a 20%. A não observância da previsão legal pode autorizara aplicação do artigo 413 do Código Civil ou da Súmula 543 do STJ. A discussão aqui é longa e não é objeto deste artigo, razão pela qual não delongarei nos comentários.

 

No final do ano de 2022, o STJ julgou o Tema 1095 e decidiu que, na situação em que ocorre a resolução por falta de pagamento do contrato de compra de imóvel com garantia de alienação fiduciária, deve-se observar a forma estabelecida na Lei 9.514/1997, uma vez que se trata de legislação específica. Isso implica na exclusão da aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

 

Sem ter conhecimento da íntegra do voto do Ministro Marco Buzzi, isso em outubro de 2022, o mercado imobiliário comemorou a decisão, pois além de proteger o instituto da alienação fiduciária, ainda protegia o crédito financiado aos próprios consumidores.

 

A decisão em questão estipulou três requisitos, ou melhor, três condições para a aplicação da Lei 9.514/97: que o contrato estivesse devidamente registrado em cartório (condição essa que tem a minha total concordância), que o comprador estivesse inadimplente e que ele tivesse sido constituído em mora. Caso os três requisitos não se aplicassem de forma simultânea, aplicar-se-ia então o Código de Defesa do Consumidor.

 

Para melhor compreensão do que representa a decisão, tracei as hipóteses de aplicação da Lei 9.514/97 nos casos de rescisão contratual:

 

 

Contrato com alienação fiduciária NÃO registrado

Contrato com alienação fiduciária registrado

Comprador adimplente

NÃO se aplica a Lei 9.514/97

NÃO se aplica o artigo 26 da Lei 9.514/97

Comprador

inadimplente

NÃO se aplica a Lei 9.514/97

Se aplica a Lei 9.514/97 somente se o devedor estiver sido constituído em mora

 

O que se depreende com a leitura do quadro acima, é que a decisão do STJ restringiu a aplicação da Lei 9.514/97. Mas o que isso significa? Significa, a princípio, que uma eventual má interpretação do instituto permitirá que o adquirente possa rescindir o contrato, independentemente da previsão da cláusula de alienação fiduciária em garantia.

 

Caso o comprador esteja inadimplente, mas não tenha sido constituído em mora, da leitura do acórdão, é possível interpretar que ele poderá pleitear a resolução do contrato e requerer devolução dos valores pagos, considerando as retenções já mencionadas. Além disso, é possível que ele seja ressarcido pelas benfeitorias realizadas no imóvel, se for o caso.

 

Se o comprador estiver adimplente, também poderá requerer a resolução do contrato e receber a devolução das parcelas conforme o estabelecido no contrato, na lei ou na jurisprudência, de acordo com as decisões judiciais.

Em nossa pesquisa, verificamos que desde janeiro de 2023 há decisões judiciais deferindo os pedidos de rescisão contratual mesmo em contratos de alienação fiduciária registrados na matrícula. Isso tem gerado uma situação preocupante em torno de um dos maiores institutos criados no Brasil, que possibilitou a tantas pessoas obterem crédito imobiliário. Essa situação pode colocar esse instituto em risco e desestabilizar a garantia estabelecida nos contratos de alienação fiduciária.

 

A tese fixada no Tema 1095 traz insegurança jurídica e afasta a boa-fé como pilar das relações contratuais.

 

Prevê o artigo 422 do Código Civil que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

 

Não há dúvidas de que as condições impostas pela decisão do STJ para o cumprimento do contrato de alienação fiduciária afastam a boa-fé do comprador e o induzem a comportamentos oportunísticos. Por exemplo, o devedor poderá “desaparecer” do oficial do cartório para evitar ser constituído em mora ou simplesmente desistir do negócio se tiver outro em vista. Em ambas as hipóteses, o vendedor não poderá exigir do comprador a garantia estabelecida no contrato. Em outras palavras, mais uma vez, o agente responsável pela produção do bem imóvel, o empreendedor, que se compromete com dezenas de compradores de boa-fé a entregar o empreendimento conforme o acordado, pode acabar à mercê da desmedida proteção judicial. Se não há confiança de que a outra parte cumprirá o contrato, aquele que concede mútuo para que o terceiro adquira o imóvel poderá considerar o seu risco mais elevado, aumentando a taxa de juros ou restringindo o crédito.

 

A esperança é que o próprio julgado ou a sua acertada interpretação corrija tais questões e dê prioridade à boa-fé no cumprimento das obrigações contratuais. Somente assim teremos segurança jurídica e proteção ao mercado imobiliário, permitindo que o setor da construção civil continue desenvolvendo as cidades e que os consumidores possam obter crédito imobiliário para realizar o sonho da casa própria. O contrário disso resultará em um profundo desastre no setor imobiliário, com vendas exclusivas para pagamento à vista ou, se a prazo, com preços exorbitantes para cobrir o risco do empreendedor. Alea Jacta Est! A sorte está lançada!

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