Artigo

Espelho meu, quem é essa que não sou eu?

Ela não aceitava o envelhecimento do próprio corpo. Havia construído um negócio próspero, era excelente cozinheira, suas quitandas eram buscadas de longe por diversas pessoas, mas estava envelhecendo e não aceitava esse fato.

Ajudava a contribuir com essa negação o fato de nunca se olhar no espelho.

Afinal, aquela pessoa que ela via refletida no espelho do banheiro não a representava. Na sua cabeça, tinha estacionado na idade dos 40 anos. Nessa fase, havia descoberto seu talento, montado seu negócio que havia se tornado próspero, e tinha descoberto, finalmente, uma forma de ser feliz.

Agora, passados mais de 30 anos, continuava com a mesma rapidez de raciocínio, a mesma habilidade nas mãos e o mesmo paladar apurado. O problema eram as pernas. Elas não obedeciam mais ao seu comando em razão dos joelhos desgastados.

Mas isso não lhe parecia justo e ela se recusava a encarar a realidade de seu corpo, que já não era mais o mesmo. Embora todos os demais membros continuassem a obedecer ao seu comando, as pernas não mais a atendiam…

Ela poderia inventar uma nova forma de viver, substituindo as pernas desobedientes por uma cadeira de rodas, poderia ensinar a outras pessoas suas altas habilidades, poderia se reinventar, mas para isso era necessário, primeiro, se reconciliar com sua imagem refletida no espelho.

E então ela começou a se olhar mais no espelho. De início, teve pavor do que viu, quem era aquela velha olhando para ela com olhar de reprovação? Levou muitos dias insistindo em encarar aquela velha senhora até que começou a reconhecer que cada ruga era como uma lembrança boa de um dia bem vivido, como um rio profundo e caudaloso de boas recordações.

Diante das lembranças de uma vida inteira bem vivida, o olhar daquela senhora começou a ficar mais doce, mais sereno. Já não se importava mais com as pernas, que não lhe obedeciam a toda hora, pois ela daria um jeito nisso, daria o seu jeito. Afinal, as coisas não haviam sido assim em sua vida inteira?

Quando lhe diziam que ela não conseguiria, que aqueles sonhos eram grandes demais para ela, ela simplesmente sorria, perseverava, trabalhava e dava a volta por cima. Aquelas rugas eram provas vivas de que ela sempre encontrou a solução para seus problemas, sempre se virou. Passando a se olhar todos os dias no espelho, começou a agradecer aquele corpo que lhe havia servido por tantos anos, que lhe havia proporcionado tantas alegrias e prazeres.

Depois de algum tempo foi capaz de ensinar a outras pessoas seus segredos culinários, seus exemplos de organização e perseverança, passando o bastão de seu negócio para seus filhos, que receberam com alegria todo o seu legado. E ela passou a se ver refletida no brilho do olhar dos seus filhos!

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