Artigo

Blockchain & contratos inteligentes

Somos grandes contadores de histórias e autor Yuval Noah Harari esclarece bem em suas obras que o Homo sapiens conquistou esse planeta graças, acima de tudo, à capacidade de criar e disseminar ficções. Ele afirma também que somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vários estranhos porque inventamos narrativas ficcionais, as espalhamos e convencemos milhões de outros a acreditar nelas.

 

Pinçadas de suas obras, parece que essas afirmações são positivas, mas elas transitam entre a ironia e a ausência de fé no ser humano principalmente quando ele analisa as fake news, afirmando que “como espécie, os humanos preferem o poder à verdade”.

 

Será que isso vai acontecer com a blockchain?

A tecnologia blockchain é um grande banco de dados compartilhado que registra as transações de seus usuários. Ela surgiu em 2008 com a criptomoeda Bitcoin – guarda informações como quantidade de criptomoedas transferidas entre os usuários; identificação (endereço digital) de quem enviou e de quem recebeu os valores; e data e hora das transações. 

 

Seu grande diferencial é não ser controlada por autoridades como bancos, governos, empresas ou grupos. O sistema foi construído de tal maneira que os participantes são os controladores e os auditores de tudo, sendo eles que tomam decisões sobre a rede.

 

Há uma cópia da blockchain nos computadores de todos os envolvidos, espalhados por vários locais do mundo e nenhuma alteração pode ser feita sem a aprovação da coletividade. O sistema se baseia nas relações de confiança no ambiente on-line e, por ser descentralizado, viabiliza transações com qualquer um que confie na tecnologia e na rede que sustenta essa distribuição. Essa confiança nada mais é do que acreditar na ficção construída há anos e gerida coletivamente.

 

Se essa rede funciona desde 2008, o que mais foi realizado desde então? Em 2015, o programador russo-canadense Vitalik Buterin criou o primeiro grande projeto depois do Bitcoin, chamado Ethereum. Essa nova blockchain, apesar de seguir parte dos princípios da rede anterior, oferece aos usuários um diferencial: a possibilidade de criar smart contracts (contratos inteligentes).

 

Esses contratos são programas guardados na blockchain que se executam conforme regras pré-estabelecidas, sem o envolvimento de um intermediário para controlar. A confiança no sistema, na tecnologia e na informação são a base das transações ali realizadas.

 

Em 2019, escrevi o artigo O custo da desconfiança onde analiso o fato de que os países ricos tendem a ser aqueles nos quais os cidadãos confiam mais uns nos outros e que nós, brasileiros, estamos entre as pessoas mais desconfiadas do planeta.

 

A desconfiança exige garantias e elas elevam o custo da negociação. No Brasil, temos os avais, fianças pessoais/bancárias e o excesso de burocracia, como as cópias autenticadas e o reconhecimento de assinaturas.  

 

Quando escrevi esse artigo, eu não conhecia a tecnologia da blockchain. Agora, após uma imersão no Vale do Silício, onde pude ouvir a experiência de várias pessoas, consegui vislumbrar o alcance da tecnologia e voltei a ler os comentários de Harari.

 

Um remédio na dose exagerada se torna veneno, mas não deixa de ser o veículo da cura na medida ajustada à doença e ao indivíduo. O veneno está no exagero. Assim imagino as tecnologias: na justa medida são veículo da cura de muitos males que afligem a sociedade, sendo a desconfiança um deles.

 

Busco então as reflexões do médico brasileiro Flávio Gikovate, que nos ensina algo muito interessante: entre fatos e ideias, fique com os primeiros.

 

Quando um grupo de pessoas cria uma rede de certificação dos fatos, como a blockchain, independente de governo e isenta de burocracia, reconheço a efetividade. Vislumbro um futuro de independência, de confiança e de trocas certificadas com os fatos registrados em uma rede compartilhada.

 

Pergunto se esse não seria o início do fim de algumas profissões, a exemplo dos cartórios que funcionam, exclusivamente, para certificar transações, seja através de escrituras ou reconhecimento de assinaturas. Será que essa burocracia será substituída pelos contratos inteligentes certificados pela blockchain?

 

Gosto da ideia, pois quando confiamos somos mais econômicos, ágeis e eficazes. Quem ganha com a desconfiança? Certamente não são as partes contratantes.

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