Cidades

O Registro Civil como instrumento de dignidade para o transgênero

Dignidade, respeito, visibilidade e acima de tudo amor, é o que mais se vê hoje nas rodas de conversas. Mas o que de fato fazemos para que isso ocorra efetivamente no nosso cotidiano? Apesar de ser um assunto em voga, na prática não se vê muitos resultados, um exemplo é a continuidade do Brasil no topo do ranking dos países que mais matam pessoas transgêneros em todo o mundo. Pesquisa que evidencia a urgência de políticas públicas e privadas voltadas para essa parcela da sociedade que só cresce.

O termo transgênero descreve “pessoas que se identificam com um gênero incongruente ou diferente daquele que lhes foi atribuído no nascimento”, conforme explicação da Unesp. Eles representam uma causa esquecida e marginalizada por muitos anos, mas com o intuito de mudar esta realidade, os Cartórios de Registros Civis de Pessoas Naturais entram nesta luta pela desigualdade e inclusão social. A Arpen Goiás promove neste sábado (9) a palestra ‘O Registro Civil como Instrumento de Dignidade para o Transgênero’.

Ministrada pela Márcia Fidelis, oficial de registro civil e de interdições e tutelas em Minas Gerais, presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do IBDFAM, a palestra integra a programação do 8º Encontro Goiano de Registro Civil Webinar. Evento que busca discutir, esclarecer pontos importantes da atualidade e disponibilizar meios para os colaboradores cartorários exercerem as suas mais diversas funções com excelência. Sempre fundamentando-se nos benefícios sociais que podem oferecer.

Na ocasião, Márcia pretende evidenciar o compromisso do oficial de registro civil, perante o Estado e a sociedade, como garantidor do exercício digno da cidadania, salvaguardando a efetividade jurídica dos atos que formaliza, com fé pública. “Por sua própria natureza, a atividade do registrador civil reflete em elementos de inclusão social de pessoas que sofrem restrições nos direitos fundamentais ligados à sua identificação e individualização enquanto cidadãos (a) brasileiros (a)”, explica ela.

Será apontado também elementos inclusivos relacionados aos transgêneros, buscando abrir caminhos para que a recepção dessas pessoas nos balcões dos cartórios seja acolhedora, equânime e inclusiva. “Como sugere o título do tema que vou explorar, pretende-se que sejamos instrumento de dignidade. E, nesse ensejo, realçaremos a dignidade do transgênero”. Ela deixa claro que no ato do exercício do seu direito, o registrador civil não irá devassar a vida do cidadão ou cidadã transgênero, não irá exigir provas e atestados médicos.

Em um mundo onde a comunidade LGBTQIA+, lamentavelmente, ainda sofre com a intolerância e o apartamento social é importante frisar que nos Cartórios de Registros Civis eles encontraram um ambiente seguro e acolhedor. “Nesse cenário, em que o Conselho Nacional de Justiça delineou regras objetivas a serem atendidas pelos Serviços de Registro Civil, o objetivo é garantir o balizamento constitucional dos procedimentos de sua atribuição, que é formalizar a real identidade de quem sinta necessidade”, esclarece Márcia.

A internet é uma grande catalisadora da discriminação e deu maior visibilidade a essa segregação. Por outra perspectiva, as redes sociais escancararam comportamentos homotransfóbicos que antes não eram tão ostensivos. Se, por um lado, o maior acesso à informação privilegiou a banalização de atitudes, por outro, despertou a urgência por coibir. “O clamor social, principalmente partindo de coletivos que militam a causa LGBTQIA+, acabou por dinamizar entendimentos jurídicos que propiciaram a criminalização da homotransfobia”.

Os transgêneros que ainda querem ir em busca dos seus direitos de reconhecimento nos Cartórios de Registros Civis saibam que não serão questionadas suas percepções de si e, mais importante, terão a garantia de que não serão discriminados por estar exercendo o seu legítimo direito. A certidão que será entregue à pessoa após a alteração do seu registro. “Este será seu primeiro documento que retrata, verdadeiramente, quem ela é, como ela se identifica e como a sociedade e o Estado deverão, indiscutivelmente, tratá-la a partir dali. E isso não é nada mais do que o direito garantido à maior parte de nós e negado a essa parcela da sociedade que, somente agora, poderá viver com dignidade”, finaliza Márcia Fidelis.

Como o processo é feito?

O STF, ao julgar a ADI 4275 em março de 2018, impôs ao sistema jurídico nacional a aplicação do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, no que concerne ao direito dos transgêneros de ter sua autopercepção de gênero reconhecida pelo Estado. Ou seja, a nossa Ordem Constitucional não admite que se tenha que constituir, por critérios alheios à estrita autopercepção do cidadão ou da cidadã, qual o gênero pelo qual se identifica, independentemente da sua conformação sexual (biológica). Nas palavras do Ministro Edson Fachin, a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constitui-la.

Sendo assim, não há que se falar em procedimento judicial para a alteração da manifestação de gênero no registro de nascimento do transgênero, bem como de seu prenome. Como ato auto declaratório, o requerimento será reduzido a termo perante o oficial de registro civil, ficando o transgênero responsável civil e criminalmente por eventual falsidade na sua declaração. O Provimento nº 73/2018, do CNJ, enumera vários documentos de apresentação obrigatória, que vão desde documentos pessoais de identificação e de cadastro até certidões acerca da vida pregressa do/da requerente. O objetivo dessas exigências não é obstar a alteração do registro.

Os cadastros deverão ser alterados para espelhar a nova realidade da pessoa interessada, principalmente porque terá novo prenome. E não se exige que as certidões sejam negativas, mas que sejam todas apresentadas para, caso tenha alguma positivação, o respectivo órgão seja comunicado acerca dos novos dados que identificam aquela parte que eventualmente integre os autos de algum procedimento. Como é comum em mudanças paradigmáticas, algumas discussões permeiam o meio jurídico acerca da exigência de anuência para alteração de registros casamento do próprio transgênero, bem como nos de seus descendentes, quando é o caso.

 

Há quem defenda que o nome é da pessoa e, onde conste seu nome anterior, a alteração deverá ser implementada. Por outro lado, há os que entendem obrigatória a anuência do cônjuge para averbar o registro do casamento e do descendente e/ou seu representante legal, para os demais casos, já que impactam suas vidas pessoais. Reiterados debates, estudos e novas experiências trarão luz para a melhor forma de se proceder nesses casos, impondo adequações normativas necessárias ao pacífico e justo convívio social, já que a vida move o Direito.

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