O oportunista
Ele era rico, viúvo, idoso, agradável e com vários profissionais que o assistiam: fisioterapeutas, personal trainer, psiquiatra, terapeutas, massagista, motorista, doméstica, etc.
Mas o personal era a sua preferência. Pessoa agradável e prestativa que soubera conquistar sua confiança. Um dia, ele apareceu com uma ideia genial de abrir uma academia, mas precisava de um fiador para assinar o contrato de locação do imóvel. O senhor, que já havia sido conquistado pelo personal, com quem passava várias horas na intimidade de seu corpo já debilitado pelos anos, nem titubeou: assinou o contrato com alegria e confiança.
Ao longo dos anos, tinha aprendido a considerar aquele profissional como se fosse seu próprio filho: o mais presente, alegre, atencioso e respeitoso. Mas, como a vida tem lá suas artimanhas, o negócio não deu certo, a academia foi desativada e a venda das máquinas não foi suficiente para pagar as despesas e as multas do imóvel locado. Resultado: uma execução de 2 milhões de reais.
Os filhos só souberam da assinatura do pai no contrato de locação quando o oficial de justiça foi à casa do senhor levar o mandado de citação para pagamento em 24 horas sob pena de penhora dos bens. Nesse meio tempo, o personal sumiu e era preciso então curar duas feridas naquele idoso: a perda da pessoa de confiança, a qual considerava como um filho, e o problema jurídico.
Além disso, os filhos precisavam digerir o fato de que sequer suspeitavam que o pai havia assinado um contrato de locação como fiador para o profissional que o assistia e que era considerado amigo íntimo da família.
Advogados foram contratados e psiquiatras consultados, tudo com o intuito de provar o estado de vulnerabilidade do idoso por ocasião da assinatura do contrato de locação no qual fora fiador. E essa não era uma tarefa fácil.
A longevidade das pessoas trouxe uma maior complexidade para as relações. Se é certo que alguns idosos não tem mais o discernimento de antes e se tornam presas fáceis de alguns parasitas, em razão da vulnerabilidade em que se encontram, também é fato que os filhos, em sua maioria trabalhando para sustentar a casa e a família, não são capazes de observar tudo o que ocorre ao redor dos genitores – que muitas vezes necessitam ser blindados de aproveitadores.
Fica cada vez mais difícil também os filhos reconhecerem alguns sinais de demência, pois alguns deles são como aquela música que desafina em certos tons. Observar o pai ou a mãe e reconhecer esses sutis desafinamentos exige um certo distanciamento emocional, muito discernimento e ajuda profissional competente, responsável e respeitosa.
No caso desse idoso, os filhos não souberam reconhecer os sutis sinais ao longo do tempo. O pai era uma pessoa agradável, não era queixoso como costumam ser muitos idosos, sabendo manter ao seu redor pessoas que cuidavam dele. O problema era distinguir o joio do trigo, como ficou demonstrado no decorrer dos anos.
Diante do problema, só restava uma solução para a família: se unir para se defender da execução do contrato de locação. O advogado contratado pela família sugeriu que fosse alegada a demência inicial do idoso, sua vulnerabilidade e a necessidade do Estado de proteger pessoas em tal situação.
O processo prosseguiu com a determinação de prova pericial para que fosse constatado o real estado de saúde do idoso. No entanto, o perito médico nomeado pelo juiz ressaltou não ter ficado claro que o senhor estava adoecido à época da assinatura do contrato.
O juiz, por sua vez, na sentença, apenas afirmou que se o senhor já estava demenciado, deveria ter sido interditado pela família e, como nada tinha sido feito, valia o contrato assinado. Ignorou o fato de que não é simples para os filhos protegerem os pais de sua própria vulnerabilidade. Mais difícil ainda é perceber que a longevidade às vezes traz o retorno à ingenuidade, à inabilidade para os negócios e uma possível dificuldade de escolher quem merece confiança ou não.
São tantas as questões, tanta complexidade a ser observada… Como interditar o próprio pai para protegê-lo de si mesmo?
Ignoradas todas essas circunstâncias, determinou-se o pagamento da dívida.
De desgosto em desgosto, acabou-se o restante da saúde do idoso que veio a morrer sem saber o resultado do processo judicial que acabou tendo a sentença confirmada pelo Tribunal. No inventário, a dívida da locação foi paga antes da divisão do restante dos bens, conforme determina a lei. O Estado silenciou sobre a vulnerabilidade do idoso, impondo mais esse amargo encargo aos herdeiros que foram obrigados a efetuar o pagamento da dívida contraída pelo oportunista parasita.